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Crônicas de um jornalista paraense - Resenha de Gutemberg Guerra
“Roubaram meu Libertango”, título que vem de uma das crônicas em que humoradamente relata algumas de suas experiências variadas da longa trajetória biográfica como jornalista e pesquisador.
#Crônicas
Li com prazer o “Roubaram meu Libertango”, título que vem de uma das crônicas em que humoradamente relata algumas de suas experiências variadas da longa trajetória biográfica como jornalista e pesquisador. Busca algumas na memória, outras vai revelando como tendo sido escritas no calor da vivência e tudo em uma linguagem quase coloquial, serena e detalhada, imergindo o leitor em seus enredos e reflexões críticas. No caso específico dessa emblemática expressão que dá título ao livro, a explica pelo desaparecimento de um disco de Astor Piazzola que lhe era de muita estima.
A homenagem a Aldir Blanc é reveladora do conhecimento profundo que exibe sobre os autores de nosso cancioneiro tanto quanto do jornalismo dos quais Aldir participou ativamente com mais de 600 composições e muitos livros. Destaca o senso crítico do artista e seus embates com o regime militar que dominou o país por 21 longos anos e que lhe valeram penas e perseguições. Belém aparece em várias ocasiões como cenário das crônicas, mas uma especial se destaca quando o menino Paulo Roberto Ferreira, morador do bairro da Pedreira, confessa suas descobertas da cidade com a ampliação do seu horizonte de vivências pelos pontos icônicos da capital do estado.
Ao bom cronista todo fato vira texto e nada mais emblemático do que o cadáver de um boto amarrado para se estender em lições sobre a cultura amazônica e especulações policiais dignas dos romances dos mais famosos escritores do gênero. O boto é mais do que tipo, é personagem densa das estórias regionais. Digno de estar na calçada da fama! Mas como, se boto não tem pés nem mãos? A calçada da fama em sua versão Belém é descrita e comentada com humor por Paulo Ferreira em uma crônica em que explicita possíveis contradições de uma proposição do gestor municipal imitando a famosa homônima existente em Los Angeles. Mas não só de refinado humor se fazem os escritos dessa obra.
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A ética é abordada em reflexão densa no texto intitulado “E se em vez de Porsche fosse um Uno?”. A pergunta é o ponto de partida para a crítica a comportamentos deletérios estruturais de nossa sociedade em que a corrupção campeia em todas as classes, naturalizados e praticados como se fizessem parte da normalidade. É um texto que merece ser conhecido e trabalhado nas salas de aulas em que a juventude aprende o básico do funcionamento das relações humanas com respeito e civilidade. As linhas vão se desenrolando prazerosamente em descrições de olhares, acontecidos e encontros de amigos como em Confraria do Açaí em que fraternamente confabulam velhos conhecidos libando suas bebidas preferidas, das alcóolicas até a água.
Serve de insumo para aula de língua portuguesa a crônica Jornadecente, nas páginas 53 a 55 em que trata dos neologismos utilizados por ilustres e reconhecidos autores do país, encerrando com um desabafo político sobre o desserviço que a maior empresa de comunicação brasileira presta aos nacionais. Bem mais adiante, lá na página 92 a 94, vai comentar sobre as palavras que vão caindo em desuso. Contundente e cheio de mistérios sobre os meandros da ditadura militar é o singelo mosaico de informações alinhados sob o título “A estranha companhia”. A sofisticação com que se patrulhavam os cidadãos com militância crítica ao regime militar punha em risco, nos mínimos detalhes, a sobrevivência dos cidadãos.
Corajosamente Paulo Ferreira vai juntando dados e lembranças, reconstituindo um ambiente policialesco do qual certamente não se davam conta os que viveram aquela época conturbada e sob controle absoluto dos executivos de plantão. O aparato repressivo era refinado no trabalho de inteligência e truculento na intimidação aos opositores. Pessoas encontradas no cotidiano poderiam ser os mais figadais inimigos, sem que se dessem a perceber como tal, e a demonstração cabal dessa realidade é desvendada quando se junta a última peça do quebra-cabeças para revelar quem seria aquele que cumpria o mesmo ritual de percorrer o caminho do trabalho, dia após dia, durante meses, anos... Força de expressão maior está na crítica que faz de sua própria profissão quando servil à grande imprensa mercantilista e favorável às classes dominantes. A crítica incide na invisibilidade de categorias sociais oprimidas e que vivem sob condições desumanas, em que pese terem as mesmas personagens dos ricos. A invisibilidade das mães dos pobres é denunciada em uma crônica veemente. O que não falta nesse conjunto de textos é senso crítico e alertas.
A sensibilidade do autor sempre esteve à flor da pele e no apurado sentimento de gravidade de cada gesto humano, de cada ação política, de cada política pública, de cada atividade profissional, empresarial, cultural... “Mariana é aqui!” é um berro estrondoso chamando a atenção para a tragédia iminente e presente no cotidiano regional amazônico e como a grande mídia ignora o que se passa nessa suposta periferia. Esse alerta se torna pungente nas páginas 71 a 73, em “Agonias de um rio”. Descrevendo um diálogo e um sonho entre amigos, o texto vira uma maravilhosa encenação dos graves problemas ambientais que vivemos. Para quebrar e diminuir o peso das notícias ruins, as mensagens radiofônicas selecionadas e expostas em “Alô, Alô, correio do interior” são de uma hilaridade ingênua e fazem a delícia do leitor, além de dar uma medida exata da comunicação no meio rural a partir das emissoras. E não cessam as estocadas nas características regionais, entre as quais a migração e as distancias se destacam e são pontuadas pelos eventos familiares que poderiam ser traduzidos como verdadeira diáspora.
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No campo comercial, o escambo praticado chega mesmo a ser reconhecido por um juiz na resolução de uma pendenga entre um empresário e um dono de garimpo. A seleção é eclética e o cotidiano da cidade vai desfilando em cada época com os seus tipos característicos. Mercadores com seus pregões típicos das iguarias que se expõem nas safras associadas a festejos e eventos religiosos, esportivos e políticos. Não escapa à pena arguta do cronista detalhes da principal disputa esportiva do Estado, do qual aspectos escatológicos se manifestam na arquibancada em que se aloja um dos mais destacados contingentes de torcedores. É para espoucar de rir da maneira que o narrador apresenta na “Batalha de Urina” nos estádios. Não fica de fora a percepção sobre um dos principais esportes no pioneirismo atlético do país, relegado depois da massificação do futebol.
As regatas continuam, ininterruptamente, mas sem valorização nas pautas midiáticas, para o lamento explícito e muito bem justificado do escritor. Pelos bairros da cidade, a malhação de Judas na semana santa é pauta obrigatória de jornalistas e radialista, e portanto, desse conjunto de crônicas que vão assumindo um caráter etnográfico. A crônica de Paulo Ferreira é calmante em um dos temas com os quais mais tenho conflito: a modernidade tecnológica. Ele intitula de “Maravilhas Tecnológicas” os atributos da virtualidade, mesmo demonstrando o choque intergeracional produzido pelo domínio dos jovens e desconforto dos maduros e idosos no uso dessas geringonças. No conjunto da obra e mesmo na escolha que fez para título desse livro, o autor não me parece feliz para nominar cada uma de suas deliciosas crônicas.
Apesar de treinado na elaboração de manchetes pelo exercício como jornalista, seu texto é muito denso mas seus cabeçalhos, a meu ver, não despertam a curiosidade do leitor pelo impacto que provocam, senão pelo hermetismo que encerram na chamada, mas que se espraia em um envolvimento efetivo no texto metrificado para as edições jornalísticas. Quem se dispor a conhecer o Paulo Roberto Ferreira professor, comunicador, com mestrado em Educação em Évora, especialista em Planejamento do Desenvolvimento pela Universidade Federal do Pará e jornalista com atuação em noticiosos escritos, falados e televisivos se deleitará e muito nesse livro que revela muito da carga cultural que o Pará oferece e da erudição exposta pelo autor.
Gutemberg Armando Diniz Guerra - Engenheiro agrônomo e escritor Revista Reflexos de Universo, de Salvador (BA), em julho/2023
Fonte: Regatão Cultural
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