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Crônicas: Aldir, o mestre-sala das letras geniais

Com Paulo Roberto Ferreira (*)


Aldir Blanc - Imagem: divulgação.

A morte de Aldir Blanc em plena a pandemia deixou a minha geração impactada. Justo ele que gostava de bateria, provavelmente não resistiria em rimar pandemia com a sua involuntária abstemia. Autor de mais de 600 canções, o psiquiatra doutor Blanc foi um crítico implacável do governo militar. E começou a ser censurado quando fez a letra de “Bicharada”, que continha o verso: “Dona galinha deu à luz em plena festa/E o sapo-boi saiu ferido de uma vista/pois o gorila linha dura pela nova conjuntura/errou seis tiros num Camelo comunista.”




Em “O rancho da goiabada” cantou os boias-frias que sonhavam com bife à cavalo, batata frita e sobremesa de goiabada cascão com muito queijo. Homenageou vultos que a história dos vencedores escondia, como João Cândido Felisberto, líder da Revolta da Chibata (1910), em “O mestre sala dos mares”. O Almirante Negro foi comparado a um mestre-sala e imortalizado no verso da canção feita em parceria com João Bosco: “Glória a todas as lutas inglórias/que através da nossa história/não esquecemos jamais!”.




Outro clássico da produção do grande compositor, que nasceu no bairro do Estácio, no Rio de Janeiro, foi “O ronco da cuíca”, também com o parceiro João Bosco, associando o ronco da fome ao ronco do instrumento musical: “roncou de raiva a cuíca, roncou de fome/a raiva dá pra parar, pra interromper/a fome não dá pra interromper/A raiva e a fome é coisa dos home/A fome tem que ter raiva pra interromper.”





A observação do cronista da cidade se refletia nas letras geniais, como em “De frente pro crime” (com João Bosco), em que o observador acompanha a movimentação e banalidade em relação ao corpo de uma pessoa. A aglomeração atraiu camelô, venda de pastel, churrasco e até candidato a vereador: “Tá lá o corpo estendido no chão,/Em vez de rosto uma foto de um gol,/Em vez de reza uma praga de alguém/E um silêncio servindo de amém.”




Apaixonado por futebol, e vascaíno de coração, Aldir Blanc compôs “Gol anulado”, que termina com a estrofe: “Eu aprendi que a alegria/De quem está apaixonado/É como a falsa euforia/De um gol anulado.” Em “Siri recheado e o cacete”, o parceiro de João Bosco faz uma homenagem ao jogador Roberto Dinamite: “O Anescar chegou, com uma de alambique/me perguntou se eu era Mendonça ou Dinamite.”



Aldir Blanc - Imagem: divulgação.


Escreveu crônicas para diversos jornais (inclusive “O Pasquim”) e revistas, depois reunidas e publicadas em 11 livros, entre eles, “Rua dos Artistas e Arredores"; "Porta de Tinturaria"; “Brasil passado a sujo”; e “Cantigas do Vô Bidu (infanti)”. Aldir compôs muitas canções para trilhas de novelas, com foi o caso de “Resposta ao tempo” (abertura da série “Hilda Furacão”, em 1998, na Rede Globo), em parceria com o pianista Cristovão Bastos: “E o tempo se rói com inveja de mim,/me vigia querendo aprender/como eu morro de amor/pra tentar reviver”.




Outro estrondoso sucesso, gravado por Fafá de Belém, foi a trilha da novela Tieta. Ele fez “Coração do Agreste” em parceria com Moacyr Luz: “Regressar é reunir dois lados/À dor do dia de partir/Com seus fios enredados/Na alegria de sentir/Que a velha mágoa/É moça temporã/Seu belo noivo é o amanhã.”




Mas foi com a música que se transformou o hino do movimento pela anistia aos presos e exilados políticos que o salgueirense Aldir foi eternizado, junto com o parceiro João Bosco e a cantora Elis Regina: “O bêbado e a equilibrista”.



De forma matreira, para driblar a censura, o compositor denuncia a queda do viaduto “Paulo de Frontim”, no Rio de Janeiro (1971), com a homenagem a Carlito, personagem de Charles Chaplim, que morreu em 1977. Denunciava a tortura com as manchas torturadas; a escuridão política do País, que sonhava com a volta dos exilados (irmão do cartunista Henfil); e chorava como as viúvas do operário Manuel Fiel Filho e do jornalista Wladimir Werzog, mortos nos porões da ditadura.




Aldir Blanc segue encantando, agora do outro lado do caminho. Mas sua obra permanecerá para sempre entre nós (Paulo Roberto Ferreira, maio de 2020).



(*) Paulo Roberto Ferreira é jornalista, escritor e colaborador do Estante Cultural

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