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Neste semana, que antecede o Dia Internacional da Mulher, 8 de março, iniciamos uma série de reportagens /depoimentos especiais com diversas mulheres da Amazônia: negras, da periferia, artistas, da academia... mulheres que lutam, mulheres aguerridas. Anônimas e conhecidas, enfim. Mulheres que resistem e existem para colaborar com seus sonhos, projetos e com o seu fazer cultural, seja na área da literatura, na área social, na música, no teatro, entre outros segmentos sociais.
Iniciamos com o depoimento da pesquisadora Alanna Souto. Diretora do Cartografando Saberes e idealizadora do Selo Nossas Vozes, ela relata o que é ser mulher no Pará, na Amazônia, no Brasil... nos contando, de uma forma poética e ao mesmo tempo instigante, as delícias e desafios de SER MULHER.

Por Alanna Souto (Facebook)
Ser mulher amazônica é ainda mais marcante quando você vem do berço dos rios e mata. Sou neta das águas avós marajoaras por parte de mãe e das águas mojuenses por parte de pai. Descendentes de ribeirinhos e de avôs negros.
Tenho então em minha ancestralidade a bisavó indígena na memória familiar mojuense, bem como os negros que ali naquela região desembarcaram nas naus do naufrágios de suas histórias do tráfico negreiro.
Tenho em minha morfologia as “raças” renegadas, abortadas, forçadamente chamada mestiça, parda, embraquecida aos olhos da colonização, mas não para seus avós e entre lágrimas e alegria, viveram ás margens dos rios e muitos formaram mocambos. Muitos gestados por indígenas e negros nas matas do Estado do Grão-Pará que souberam em diversas situações históricas resistir e recriar fronteiras da liberdade. Seja em suas vidas quilombolas, seja em suas vidas ribeirinhas, suas fortes memórias agora os relocalizam e a presencialidade do passado se recria na dinâmica das suas vivências do presente.
Muito embora cientificamente raça não exista, viemos todos e todas da espécie homo sapiens originária mais antiga advinda da Etiópia na África.
Ser uma mulher cabocla, tendo em vistas minhas origens familiares, que nasceu na cidade, mas teve a infância entre mergulho em igarapés e passeios de canoas, crescendo sem os luxos e os intercâmbios para Europa ou E.U.A como muitos adolescentes da classe média branca da minha geração em uma escola particular que meu pai se sacrificava para pagar para três filhas não era fácil, especialmente, nos meses que as mensalidades atrasavam, pois pesava nas costas do velho caboclo que não podia nos dar as viagens gringas, mas nos levava para o Mojú e lá era uma diversão com minha vó Duvalina.

Ser essa mulher, como há centenas de outras que nasceram na cidade, mas tiveram sua infância e origens entre a mata e o urbano com pouca acessibilidade e privilégios fazem muitas de nós nos agarramos nos estudos, sem tanto inglês e com uma língua portuguesa que o tempo me mostrou que não nos cabe a gramática lusitana, se nos fizeram perder diversas línguas mães entre nativas e Áfricas, que subvertamos então a língua portuguesa, a minha linguagem e identidade é “afro-indígena”. E assim passei no funil do vestibular elitista, enfrentei a universidade, fui coordenadora do CAHIS da Ufpa e delegada do congresso da UNE em 2002. Subverti meu mundo acadêmico e político entre viradas culturais na orla da beira do rio da UFPA. E quando me perdi entre viradas e noitadas me reencontrei e me formei. Fiz mestrado, padeci em um doutorado na UFPR, momento crítico da minha vida, minha passagem na Curitiba praticamente européia, rompimento com o programa lá. A vida não foi ficando fácil a medida que mulheres dessas origens, e dessa pele avançam na qualificação. Fiz outra seleção de doutorado, aprovada no NAEA- UFPA em 2014 e concluo o doutorado em 2018. O pós- doutorado em 2019. E os desafios de publicações dessas pesquisas ainda prosseguem. E continuo na defesa dos projetos no campo de investigações descoloniais defendidos nessas duas últimas qualificações.
E diante de uma conjuntura fascistas nefasta, predadora para com as mulheres étnicas-raciais (pretas, indígenas, quilombolas, ribeirinhas, afro-religiosas e seus descendentes) em todos os aspectos, incluindo, a vida acadêmica e sua sexualidade, a lesbofobia, a transfobia com a mulher trans, o boicote quando essas se fazem cabeças pensantes sem arrumar marido ou bater continência para algum astro branco de uma academia que ainda se faz predominantemente masculina e branca. Foi fruto desse contexto o nascimento do Selo coletivo Nossas Vozes em que se cria uma rede de pesquisadoras, cada uma dessas categorias étnicas-raciais , respeitando seus demarcadores de limites étnicos-raciais em defesa e abertura de um espaço de publicação para suas pesquisas, saberes diversos, novas questões, outros mapas e narrativas dessas mulheres.
O outro projeto Instituto Cartografando Saberes, que ainda estamos legalizando, a demora se dar pela violência no trânsito que sofri recentemente, escapei da morte, apesar disso fraturei apenas o punho direito e fiquei 1 mês internada praticamente, foi elaborado e criado por mim a qual reunir pesquisadoras depois do projeto elaborado que toparam apoiar e abraçar a casa de elaboração e gestão de projetos que se compõe por enquanto por 7 eixos de ações científicas e sociais. Ou seja, tais projetos não surgem do seio da universidade que pouco tem nos alcançado e nos incluído enquanto as “cabeça pensantes”, apesar de projetos pontuais importantes, a citar o Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia do pioneiro Alfredo Wagner o qual sou colaboradora. E tal situação vai ficando mais excludente quando se trata das intelectuais quilombolas e indígenas, algumas já ate com mestrado e doutorado, mas dificilmente tem a oportunidade gestar e defender projetos científicos que demarcam seus territórios. Como sempre tivesse que precisar de tutela do Estado.
Projetos e organizações gestados por mulheres do campo subalterno da academia, mas fora dela e muitas vezes somos estigmatizadas por essa academia. Certamente que a unidade do selo Nossas Vozes como se verifica não se constrói homogênea e há desentendimentos, há ruídos, afinal a conjectura nos adoece e nos violenta em vários sentidos, mas o apoio entre nós, a empatia, a solidariedade entre cada uma de nós que vivemos o selo se faz maior e acima de qualquer disputas contraproducentes ou falha no lidar com outra no decorrer da caminhada se supera com entendimento de contextos e não no apontar de dedo. Ser mulher nesses contextos étnicos-raciais e ainda por cima lgbt que sou na direção da Cartografando é saber dos riscos e de ser colocada á prova o tempo todo. E outras projeções machistas e pejorativas de lentes acostumadas a objetificar e castrar mulheres. “Joga pedra na Geni”.
O racismo e o machismo, geralmente, a face da mesma moeda que tanto nos quer presas, subalternas e guiadas pelos salvadores brancos. Mocinhos esses que praticam as mais sutis formas de exclusão e silenciamento quando a mulher tem voz, projeto e direção própria. Minha memória me faz lembrar diariamente quem sou e do meu lugar, descendente de ribeirinhos e uma identidade “afro-indígena” que se confirma, em especial, nas searas das umbandas e tambores de mina, a pajelança cabocla, a encantaria dos territórios de matriz africanas as quais abraço.
Se a vida fosse fácil se chamaria “homem branco hetero cis da classe média branca” que, geralmente, é o modelo acadêmico não questionado. E assim se reproduz muitas vezes “peles negras, máscaras brancas”. O parabenizado pela corte institucional, o cidadão universal. O contrário disso somos nós, mulheres , marcada pela questão étnica-racial , e ainda pior, quando somos LGBT.
Reportagem: Vivianny Matos (Jornalista Estante Cultural)